Capitulo I
O acordo
A |
noite estava chegando langorosa e despudorada como uma flor que abre devagar, um vento fino balançava as árvores do Jardim da luz, o escuro logo alcançaria sua perfeição agarrando os calcanhares dos transeuntes, dos mendigos, das ciganas e dos estudantes. O silêncio era entrecortado pelo barulho dos automóveis e dos ônibus, o cheiro forte da grama molhada e o perfume de dama-da-noite subia em camadas como um vapor de incenso desprendendo-se da terra.
Matheus cruzou todo o parque antes de chegar até a estação, ficou parado um bom tempo de pé, olhando para a fonte central, ascendeu um cigarro, a água era calma e grossa, verdolenga, como esmeraldas gastas, da cor de seus olhos. Tinha tomado um ácido antes de sair de casa e tudo parecia mais colorido e pulsante. As estátuas da fonte, brancas como virgens de igreja, olhavam pra ele dardejando um lança-chamas nos olhos, um suspiro abafado escapou pelos lábios de pedra da estátua:
-Acho lindo um garoto que se mata.
A estátua sustentava um olhar imperativo e escaldante, prendia na boca seu sorriso artificial, a outra estátua que até agora mostrava-se em silêncio continuou dizendo:
-Mais lindo ainda é aquele que se mata por amor.
Matheus enxugou a lágrima pendurada com a manga da jaqueta, um sentimento acre e ardente queimou-lhe o coração, não iria chorar, já tinha chorado demais esses últimos dias. Voltou a seguir seu caminho em direção à estação, tirou o fone dos ouvidos, e conectou-se com os sons da cidade, era como se pudesse sentir cada nota, cada ronco, cada pedal que movimentava a bizarra máquina metropolitana, era assim que via a cidade, uma máquina, uma máquina que nunca parava de girar.
Sentiu a noite atrás das costas quando deixou o Jardim da luz, engoliu um suspiro, e quando o sinal permitiu, atravessou a rua, pessoas indo e voltando, cruzando seu caminho e desviando –se dele, Matheus estava imune à eles, podia atravessar um exército, perder-se no meio de uma multidão, continuaria sentindo-se a pessoa mais solitária do mundo.
A Estação era linda,uma jóia perdida no bairro degradado, construída no séc. XIX , sua estrutura metálica levantada de ferro- fundido foi toda trazida da Inglaterra, sua arquitetura refinada e séria assemelhava-se bastante com a Flinders Street Station na Austrália,também projetada por ingleses. Do alto da estação, no telhado da torre do relógio Lyrael observa Matheus atravessando a faixa de pedestres, o cigarro equilibrando-se em seus lábios, óculos new wave escuros, escondendo os olhos vermelhos. A loucura da droga e da angústia pareciam conduzir cada passo.
O anjo fechou os olhos, o vento suspendeu seu cabelo fino e dourado, sentiu o choro vindo da boca do estômago até o delta dos olhos, lembrou-se perfeitamente da última vez que tinha chorado. Já fazia muito tempo, milênios, nessa época Matheus não era esse garoto perdido, corroído pelo tempo e pela decepção, nessa época Matheus ainda era o belo e altivo príncipe Samyaza. Quando a guerra de Armon estourou e Deus mandou que todos os anjos caídos fossem presos, Samyaza foi então acorrentado numa estrela. Foi nessa ocasião que Lyrael chorou pela última vez, e chorou porque os dois eram amantes.
O que muitos chamariam de obsessão pessoal Lyrael chamava de amor, um amor secreto e incompreendido, o caso entre os dois foi sempre velado, quando outros anjos perguntavam à Lyrael o que ele realmente sentia por Samyaza ele sempre dizia:
-Admiração.
Mas era mentira, Lyrael amava-o com todas as suas forças, amava sua personalidade tempestuosa e rude, sua forma imperativa e inconstante, amava-o com a sinceridade da criança que ama o pai indiferente, tinha-o como seu herói, seu porto-seguro, seu mal exemplo, sobrava em seu amado tudo o que lhe faltava, Samyaza o completava, o preenchia de tudo, sentia-se pequeno e frágil quando acolhia-se em sua sombra, seu ombro o confortava, suas mãos pesadas afagavam-lhe os cabelos. Quando estava à seu lado Lyrael não desejava mais nada, apenas que o tempo parasse e aquele momento fosse eterno.
Apesar da sua devoção, Samyaza, muito discreto, demonstrava ao companheiro apenas algumas manifestações de afeto, o que já eram mais do que suficientes para que causassem arroubos de felicidade no coração do amante. Lyrael abraçava-o, declamava juras de amor e fidelidade eternas, apenas isso, nem o beijo era permitido, por isso a descrição devia ser exemplar. Por quanto tempo agüentaria viver assim, Lyrael ainda não sabia, mas nessa época ainda não conseguia perceber nada de errado , não se acorda um belo dia e se dá conta que sua vida é na verdade uma sobrevida , arrastada e postiça.
- Está tão magro e triste, se eu pudesse fazer alguma coisa....qualquer coisa para tirar a tragédia de suas costas e corrigir o seu destino.
Seu pedido era sincero e em seu discurso a culpa parecia pontuar as entonações das palavras jamais se perdoara de ter perdido Samyaza para as fileiras de Lord Baltazar, achava que o tinha deixado escapar entre os dedos, furar a barreira segura que ele próprio construira para o casal. Não admitiria perde-lo mais uma vez.
Do alto da torre em que se encontrava, a cidade mostrava-se calma e pontilhada de luzes e pessoas correndo como formiguinhas, o anjo sentiu que o vento ganhava força em suas costas, suspendendo sua camisa leve e branca, como se quisesse arrebentar seus botões, uma lufada de vento tão forte o atingiu que o fez desequilibrar e por pouco não cair do telhado, o relógio bateu às 18:00 hrs e a sombra atingiu completamente a estação, e com ela o frio dos cadáveres.
Lyrael sentiu o arrepio percorrer suas asas e descer para a espinha, levantando os pelos do pescoço, o cheiro de lírio entrou em suas narinas sem pedir licença e causou-lhe enjôo e uma dolorosa vertigem. Uma mão pesou-lhe no ombro e a gargalhada fatal ecoou como um raio, mergulhando a consciência de Lyrael numa piscina de lembranças trevosas e mal agouros.
Lord Baltazar estava parado ao lado dele, havia aparecido como que por encanto, uma figura alta e bem apessoada, era magro e branco como uma estátua de cera, uma pesada armadura parecia estar grudada em seu corpo, as asas abertas exibiam suas penas escuras e sua boca apontava uma espécie de meio-sorriso. O ar de deboche era como um círculo materializado ao seu redor, suas verdadeiras intenções estavam sempre escondidas atrás da armadura medieval e de sua capa preta. Todos os anjos sabiam que ele só havia escapado do exílio porque havia sido incumbido de servir aos céus com o cargo de Anjo-Exterminador, ainda era temido por ser considerado ardil e sagaz, sua presença naquele momento só podia significar uma coisa, tudo o que Lyrael temia:
- Vai se matar....?
- O garoto? Certamente, já têm alguns dias que está planejando isso. –a voz de Balthazar era como um sentença, como se o pescoço de Maria Antonieta já estivesse pronto, cheio de carne, esperando apenas a lâmina do carrasco descer.
-Vai se jogar nos trilhos do trem não vai!? Por isso está aqui.
O Anjo-Exterminador confirmou com aparente calma.
-Como é morrer? – Lyrael perguntou.
Quando o silêncio pareceu eterno, e ele percebeu que a pergunta não seria respondida sentiu uma pontada, uma enorme dor, era como arrancar uma perna, um olho, estava prestes à perder seu amado novamente, e não havia nada que podia fazer para resgatá-lo das sombras em que ele se encontrava.
-Sabe Lyrael, uma coisa que vocês anjos da mediocridade nunca entenderam...os homens não são felizes, a vida na Terra é feita de espinhos, não rosas e aqueles que se matam tem suas razões para fazê-lo.
-O suicídio é crime diante dos olhos de Deus. – respondeu crente.
-Não comete suicídio aquele que já nasceu morto.
Lyrael não respondeu, estava desabando em si, perdendo-se em lágrimas e em intermináveis questionamentos.
- Aposto que sei o motivo do choro, é sua impossibilidade não é!? Você não pode fazer nada Lyrael.. ninguém pode tirar a corda do pescoço de um enforcado, ninguém pode resgatar aquele que está para morrer. Até os anjos são limitados...
Matheus chegara na plataforma, era uma sombra, já parecia um fantasma , teso e branco, o sangue parecia não afluir-lhe mais nas veias, estava paralisado, tomado por um medo confuso e imerso em pensamentos delirantes e verborrágicos, era invisível para todos os outros, julgava-se insignificante e totalmente dispensável para a humanidade, não faria falta se deixasse de existir. Naquele momento, em que o barulho do trilho e a fala alta dos transeuntes entrecortavam sua afetada linha de raciocínio Matheus sentiu-se desprovido de sentimentos, como se eles tivessem sido desgrudados de si, flutuando no ar como intrusos, sobre si mesmo, nas roupas que ele estava usando.
- O seu amor é algo que você criou para sí, o seu desejo de unir-se à ele é sacrílego, poderá ser mau interpretado entre os seus. –Lord Balthazar ofereceu seu ferino desdém e encheu a boca para atingir os sentimentos de Lyrael.
-Eu sei, mas não posso fazer nada, cada aspecto dele me prende, agora mais do que nunca, acompanho-o desde que reencarnou, quero ficar longe mas não posso, não consigo, gostaria de ser soldado à ele.
-Ainda o ama? – Lord Balthazar quis saber.
- O quê?
- Se ainda o ama.
Lyrael não tinha como recuar, a máscara angulosa do cinismo já não mais servia em seu rosto, se tivesse hesitado em sua resposta naquele momento seria como uma traição.
- Amo.
- O suficiente para cometer a loucura de tentar salvar sua alma
- O suficiente para resgatá-lo no inferno se assim fosse necessário.
- Sabe que não seria permitido!
- Mas eu faria mesmo assim.
O Anjo-Exterminador soltou uma deliciosa gargalhada, quase obscena, exibiu seus caninos afiados e balançou os cabelos escuros com uma graça quase feminina.Voltou-se em direção à plataforma e arqueou ligeiramente o corpo para baixo.
Matheus respirou fundo e deu o primeiro passo em direção aos trilhos vazios, era o fim de tudo, não havia conseguido conviver com suas instabilidades, com seus vícios e com os recôncavos mais secretos do seu ser, bebia demais, fumava demais, e os fantasmas da culpa, da vergonha e do remorso alcançavam sua cama todas as noites, suas teorias mal digeridas sobre religião, teologia ou espiritualismo, tudo estava destruído, bem como seus sentimentos e sua capacidade de amar, Matheus estava oco. Avançou mais um pouco dando o segundo passo.
Lord Baltazar ergueu os braços para o alto, as estrelas pontilhavam o céu, o cruzeiro do sul brilhava, sua luz bruxuleante como a chama tênue de uma candeia banhavam o telhado de uma luz materna, aveludada e azul, Sacudiu suas asas de uma forma tão violenta que sua capa foi levada pelo vento e abocanhada no breu.
- O que você vai fazer? -Lyrael perguntou temeroso, tomado pela febre e pela excitação.
O suor escorria na testa de Matheus, faltava pouco agora, mais alguns passos e estaria tudo acabado, alcançou a borda do trilho, ouvia-se na plataforma o barulho metálico do próximo trem, o adolescente alcançou a faixa-limite, fechou os olhos.
Lord Baltazar entoou à meia voz um canto esquisito, uma espécie de oração cadenciada e breve, a escuridão era quase completa no alto da torre do relógio, como num encantamento, uma bola luz crepuscular começou a brilhar na altura do peito do anjo, que ainda tinha os braços levantados e as asas esticadas, o frio intenso, glacial desceu na terra com a invocação.
Matheus sentiu que era o último passo, pensou fortemente que tudo seria questão de segundos, talvez conseguisse morrer com a queda nos trilhos. Inclinou o tronco para frente,bem devagarzinho, o peso de seu tronco encarregar-se-ia do resto, ouviu gritos nas costas, mas agora já era tarde, já não tinha mais volta, já sentia seu corpo ser puxado pela gravidade, um forte puxo no baixo-ventre. Estava condenado.
Da bola de luz fosforescente uma cortina fina e ondulante desprendeu-se e como uma membrana que crescia parcialmente envolveu todo o bairro com uma cúpula de fumaça avermelhada. Os gritos cessaram, até o murmúrio das árvores do Jardim da luz pareceu silenciar-se. Lord Baltazar tinha parado o tempo, tudo aconteceu numa fração de segundo, no exato momento em que Matheus impulsionou o corpo contra os trilhos.
- O tempo...você...!? – Lyrael perguntou quase que aterrorizado e ao mesmo tempo surpreso.
Lyrael observou a estação congelada, todos parados, os corpos boiando no tempo diluído, como bonecos, manequins, o corpo de Mateus suspenso no ar, preso em fios invisíveis, com a cara virada para o chão, sua morte era inevitável.
- O tempo está congelado, mas o truque dura apenas alguns minutos, a cúpula está apenas sobre o bairro, por isso temos que correr com o acordo!
- Acordo?
- Matheus é a encarnação de meu servo mais leal, estava contando com seu regresso para o mundo dos mortos, tenho planos para Samyaza, assim como você espero-o ansioso, mas confesso que quando o vi chorando por seu antigo amor, percebi que talvez a história possa ser mais interessante, e ao invés de resgatar apenas um, talvez consiga corromper um segundo anjo e aliá-lo aos meus propósitos.
- Nunca vai me desviar da luz Lord Baltazar
- O que Gabriel anda falando pra vocês hein? Nem tudo no mundo é luz e trevas.
- Qual é o acordo? – Lyrael retomou o assunto.
- Quatro dias filho, quatro dias vivendo na Terra como um simples mortal ao lado do que restou de Samyaza, o patético Matheus. Se em quatro dias ele demonstrar seus sentimentos de amor e regenerar-se da tristeza que habita seu coração você tem a minha palavra que o deixarei em paz e não mais me preocuparei em recuperar meu antigo companheiro.
- E o que eu tenho a perder...? Afinal, vou fazer um acordo com um anjo caído! – Lyrael quis saber.
- Quando o relógio da Torre da Luz soar às Hrs18:00do quarto dia nós nos encontraremos aqui, e se ele não tiver se recordado do amor que une vocês há tanto tempo, o preço será... suas asas.
- Minhas asas!?
Nessa hora, quase recusou, quase voltou atrás, quando Lord Baltazar pediu suas asas significava que se Lyrael falhasse perderia sua condição divina, e estaria condenado a morar na Terra e ter uma vida de mortal.
- Samyaza então será meu! – O Anjo exterminador sustentou um sorriso perturbador no canto da boca.
Silencio absoluto
- E então, de acordo? –quis saber Lord Balthazar.
- Gostaria de pensar a respeito.
- Se você o ama de verdade, se é só isso que importa, mais do que tudo, mais do que sua própria vida então Lyrael, você não tem nada a perder, Você estaria disposto a se destruir à se sujar para sempre em nome do seu amor?
- De acordo!
O anjo ofereceu-lhe seu meio sorriso mais uma vez, e o frio que o acompanha ficou mais intenso.
- Perfeito! Mas antes de abrir suas asas e resgatá-lo é importante que saiba que a consciência de Samyaza está enterrada dentro de Matheus, ele não se lembra de absolutamente nada.
-Eu sei, observo-o desde seu nascimento, sempre que posso o vejo acordar, ouvir seus discos, sei como pensa, como se comporta.
-Você será um estranho em sua vida.
Lyrael vira-se, o tronco já está debruçado para o salto, as asas abertas.
- E outra coisa, você dispõe de todos os meios para tentar salvar a alma de Samyaza da auto-destruição, mas não pode fazer nada que os céus considerem pecado...você entendeu, nada!
-Nem o beijo?
-Principalmente o beijo.
Lyrael sentia-se um louco em fazer esse trato com Lord Baltazar e compreendeu isso no momento que saltou da torre e planou em direção aos trilhos, ouviu sua gargalhada esganiçada e alta:
- Vá passarinho, resgate seu verdadeiro amor, e condene sua alma eternamente por isso!
Quando tomou Matheus em seus braços sentiu o frio desaparecer em suas costas e a lágrima quis voltar. Mateus parecia tão inocente aninhado em seu calor, na subida Lyrael voltou-se para baixo e viu a estação perder-se ao longe, assim como o Jardim da Luz, a membrana avermelhada dissipou-se assim que eles a cruzaram, o anjo planou com velocidade entre os edifícios altos e espelhados, apertando o adolescente com o máximo de cuidado para que ele não escorregasse, sentiu que suas asas começaram a ficar mais pesadas, preocupou-se em levar Matheus em segurança para sua casa antes que despencassem do céu.
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